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Como já vimos, os filósofos, por intermédio da especulação
podem “criar” ou “matar” deuses. São crianças cultas inventando conceitos de
segurança para os seus medos e para os medos, inquietações e sensação de
impermanência das sociedades a que pertencem.
O intelecto é insignificante por ter a sua actividade
limitada pelo espaço-tempo. Assim, todas as filosofias estão limitadas pelos
ferozes condicionamentos daquele e as investigações surgem como consequência do
seu engenho desenvolvido ao longo dos séculos.
Quando não “possuímos” – e em contrapartida não somos
possuídos – sistemas filosóficos, religiões com os seus deuses e dogmas,
superstições, pessoas e coisas, estamos preparados para ingressar sem esforço
na Terra da Verdade. Esta Verdade não é estática e como tal não
pode ser definida, enclausurada numa qualquer fórmula limitativa. Não permite o
acumular de conhecimentos, tendo de ser percepcionada em cada instante, da
mesma forma que o deve ser a beleza de um rosto, de um vale serpenteado por rio
de águas cristalinas, das nuvens, de uma magnífica aurora.
Conhecemos o que nos é exterior pela experiência. Mal ou
bem conhecemos o mundo e uma parte da nossa mente.
Pergunto: pode o conhecido atingir o desconhecido? há
alguma experiência que nos possa conduzir à “terra de ninguém”, à Verdade, ao
incognoscível?
Se a mente percebe a sua incapacidade para atingir Deus,
cessa a busca, e com este abandono, pacifica-se, silencia, e talvez por
intermédio do silêncio pacificador, possa intuitivamente aceder ao seu
conhecimento instantâneo.
Precisamos de aniquilar os mecanismos de defesa psicológica.
A liberdade só poderá existir em toda a sua plenitude, quando o nosso cérebro
estiver integralmente despojado de dependências obnubiladoras, tais como as
religiões organizadas e os seus deuses, puras invenções de mentes atormentadas.
Estas maleitas, fortemente arreigadas nos alicerces profundos do cérebro, não
podem ser esconjuradas por filósofos, teólogos, gurus, e outros repugnantes
vendilhões da felicidade. Apenas nós as podemos destruir por intermédio da
observação compreensiva. Por outro lado, se a vontade e os múltiplos anseios,
desejos e apegos desaparecem naturalmente, nasce no homem uma energia
indescritível e incomensurável.
A vida deve ser
considerada como um todo, e não observada parcelarmente, já que é um fenómeno
eivado de anarquia. Pela parte pretendemos atingir o Todo, partindo do
conhecido almejamos o desconhecido. Como somos tolos!
Habituámo-nos a
ver apenas o que nos rodeia, objectos e pessoas que nos circundam. No entanto,
precisamos de penetrar no infinito – no que não tem começo nem fim –,
estender a nossa visão para além de todos os limites que conhecemos, e isto,
independentemente da inacessibilidade daquele ao pensamento.
Uma vida sem
autoconhecimento e sem a pura observação de tudo o que nos rodeia, é um
desperdício, e como tal não merece ser vivida.
Porque é que
transformamos as experiências dos outros em nossas? O que é que nos leva a
sublimar ou ignorar as nossas próprias vivências?
O espírito acomodatício não quer encarar os factos, em
especial os que nos são desagradáveis ou que não respondem às nossas
inquietações. Mas, a experiência de outrem, é uma experiência que não é
própria, fazendo com que o ser humano que a perfilha, não seja mais do que um
cidadão de segunda, homem vestido de penas, tal papagaio.
Olhamos o Universo na sua imensidão, a vastidão do espaço
com uma aparente infinitude de astros e sentimos intensamente a nossa
efemeridade. É indubitavelmente esse sentimento de impermanência, tão
inquietante quanto angustiante, que nos levou a buscar algo que esteja para
além do nascimento e da morte e que possa connosco “negociar” a imortalidade.
Dizer que o Universo não é o produto de um acidente, mas
antes de uma Realidade absolutamente consciente, sábia e boa, é negar todo um
conjunto de factos, e os factos são indesmentíveis. Já o estabelecimento de uma
relação com essa Realidade transcendente, capaz de nos transfigurar, é
pressuposto que apenas no mais íntimo da individualidade poderá obter resposta.
Não há fórmulas mágicas, credos, procedimentos mortificantes, que a
proporcionem e expliquem.
O homem deseja o prazer; é algo de primário. Os desejos
são múltiplos, pertencendo uns à cidade terrena e outros à cidade de
deus. Não obstante sejam muitas as distracções do ser humano, com os seus
consequentes desejos, o maior e o mais inatingível é o de Deus, estando
associado à aspiração da imortalidade. Se a essência do Todo for a infinitude e
a eternidade, podemos estar certos que o pensamento nunca a atingirá por via
das suas naturais limitações.
Tem de ser cada um de nós, por si, sem recurso a dogmas,
crenças, sistemas filosóficos ou auxiliados pela teologia – seja a
dogmática, seja a natural –, que deve descobrir se Deus tem uma verdadeira
existência ou se é um fantasma elaborado por um pensamento tortuoso, a quem todas
as ilusões são concedidas de molde a minimizar o sofrimento psicológico pela
fuga da realidade, do que realmente é.
Tem de ser cada um de nós, que deve descobrir se existe
uma alma e o que é a morte, essa realidade fantástica que tanto nos atormenta e
aniquila a beleza da vida.
As Igrejas com a sua horda de sacerdotes ineptos não têm
qualquer valor, para além de permitirem ao miserável homem comum uma frágil e
ilusória segurança.
Não sabemos se Deus e a alma existem. Desconhecemos o que
é a morte. Independentemente das inúmeras respostas de filósofos e teólogos
alicerçadas na razão, na fé ou em ambas, nada conseguimos atingir ou o que
atingimos está à partida condicionado pelas impressões residuais acumuladas na
mente humana durante milénios e na nossa em especial, durante toda a nossa
vida. São em regra respostas programadas, quer ao nível consciente quer
inconsciente. Não poderia ser de outra forma. O pensamento é um exímio
prestidigitador, um ilusionista que se engana a si mesmo quando pretende transcender
o espaço-tempo na inglória tentativa de compreender o que é permanente, e como
tal, não pertence à natureza do impermanente. O pensamento só compreende – quando
compreende – realidades limitadas, não as que excedem limites
inultrapassáveis. Em boa verdade, toda a actividade do cérebro padece das
mesmas limitações deste: as do espaço e do tempo. Ora, o que é limitado, não
tem acesso ao ilimitado, à eternidade e à infinitude.
Podemos então, confiar no pensamento? Julgamos que não.
Por muito elaborado, lógico, coerente e profundo que seja o pensamento, isso
não fará com que a superficialidade e a inconsistência reinem no seu seio. A
Verdade é uma terra sem dono, terra de ninguém, trilho não delineado,
inatingível por qualquer doutrina, sistema filosófico, especulação ou religião.
A Verdade não jorra nos corações dos que a perseguem com incessante ansiedade,
porque é contrária à ambição, a todas as ambições, mesmo à ambição que apenas
se tem a si como objecto.
A sabedoria é a
constatação da nossa ignorância, da incognoscibilidade das questões metafísicas
e da sua inevitável aceitação.
Muitas das vezes,
os que aparentam sabedoria são tão insensatos como crianças, jogando às
escondidas ou “reinando”.
Em bom rigor, a
sabedoria entendida como conhecimento, tem muito pouco valor. Apenas quando
reconhecemos a nossa ignorância, como o fez Sócrates, terá alguma valia.
A minha metafísica, resume-se grosso modo, a um simples
“não sei”. Não conheço expressão mais fácil e real. Se não sei e não procuro,
talvez venha a conhecer, talvez encontre, melhor, talvez venha eu mesmo a ser
encontrado. É esta a humildade que permite transcender o espaço-tempo.
Deus não pode ser definido. Manter-se-á para todo o sempre
como o que é incognoscível. E se por um mero acaso, eu tiver alguma experiência
de aproximação à sua existência e essência, essa experiência será unicamente
minha e praticamente incomunicável, e terá nascido da morte do pensamento.
Ao problema da existência de Deus, conceito que remonta
aos primórdios da humanidade, referem-se os filósofos a uma entidade suprema,
que se identifica com uma existência absoluta, que se satisfaz a si mesma
subsistindo por si, que cria e é livre no acto da criação. Poderá este deus dos
filósofos, ser também o deus de uma determinada religião? Em consonância com os
nossos condicionamentos, que como tal pouco mais são do que pura ficção,
poderemos responder afirmativa ou negativamente, mas sempre de modo dúbio e
incerto.
Filósofos, aspirantes a santos, místicos de práticas
torturantes, afadigam-se na procura de um Deus que lhes escapa e que se lhes
nega, não obstante se iludam com certezas e visões que têm a medida das suas
expectativas. Não estão libertos do medo. Se o homem não estiver acorrentado
pelo medo procurará Deus?
O deus das religiões, dos teólogos, dos filósofos, dos
livros “sagrados”, não é Deus, antes uma mera ilusão, ainda que agasalhadora e
assombrosa. Se o conceito e a crença não existissem, estaríamos limitados à
alegria e à tristeza, mas logo o inventaríamos para protecção dos nossos medos
angustiantes.
Na fé, pode existir uma verdadeira “cegueira filosófica”,
uma fé sem qualquer alicerce, construída nas nuvens que são arrastadas por
ventos que mudam constantemente de direcção. Esta, não é de todo razoável, mas
antes acto irracional e cómodo. Apesar de tudo, no Concílio Vaticano I, foi
frontalmente atacado o fideísmo, afirmando-se a plena capacidade da razão para
demonstrar a existência de Deus, mais do que atestar por uma mera razoabilidade
o acto de fé subjectivo.
A criação dos nossos deuses em nada diminuiu o sofrimento
do ser humano, excepcionados alguns espíritos raros – normalmente apelidados
de místicos – que, como consequência de patologia mental ou de uma
realidade que nos transcende – e para sempre transcenderá – se acercaram
do Absoluto, comungando da sua essência ou deram assentimento à sua existência.
Invocamos
Deus e o seu santo nome para nossa protecção – como um antibiótico para uma
infecção –, para que vejamos os nossos desejos realizados e os males afastados.
E para além deste, há os santos, santos para todos os fins, e uma Virgem Maria
que parece ser mais poderosa do que o próprio Ser supremo, tantas vezes
relegado para um plano inferior.
Diz-se que o mundo que perdeu o Deus cristão só pode
assemelhar-se ao mundo que ainda não o encontrou. Mas, se o Deus único nunca
foi encontrado pelo mundo, que poderá este perder?
Mesmo que se
considere que o Absoluto é atingível pela experiência mística, dir-se-á que
esta é pessoal e intransmissível, inexistindo palavras que a possam cabalmente
explicar ou divulgar.
Alguns filósofos tendem a crer na existência de Deus em
virtude de não conceberem um Universo apoiado numa realidade pessoal. Poderá o
cosmos ser fruto de lei, acaso ou vontade inconsciente? A tal questão respondem
pela negativa. O Universo foi criado intencionalmente, com sabedoria e bondade,
elevadas ao seu mais alto grau. Mas, tal afirmação não tem correspondência
factual.
Não é o pensamento que ascende ao Absoluto, mas é o
Absoluto que atinge a mente vazia.
Só um cérebro, que sem motivo foi esvaziado do seu
conteúdo – daquilo que o condiciona –, e que nada busca, poderá ter
acesso ao que é Eterno e Infinito. Este Ser, poderosa fonte de energia sem
forma nem qualidade é inatingível na sua essência. O Absoluto – ou seja lá o
que for – só surgirá por sua livre vontade, espontaneamente, nunca por via
das nossas mesquinhas exigências, preces, invocações, ou na pior das hipóteses
por práticas “religiosas” mortificantes.
A alma, princípio de vida e princípio de inspiração moral,
não pode ser investigada como problema religioso, independentemente dos
problemas da imortalidade e de Deus.
Que eu morra e renasça a cada instante. Só essa atitude é
absolutamente religiosa e a santidade é a observação continuada de nós mesmos e
do que nos rodeia, o que faz cessar o tempo com a consequente imersão na
eternidade. Daí nascerá a construção continuada daquilo que comumente
apelidamos de alma.
Não podemos discutir ou fazer acordos com a morte.
Poderemos nós adiá-la, induzi-la à concessão de um prazo favorável que nos
permita concluir os nossos mesquinhos projectos? Obviamente que não. A
inevitabilidade não admite concessões.
Vida e morte caminham de mãos dadas na floresta da
existência. Só se vive quando se morre e morre-se para viver. É pela morte que
nasce o inteiramente novo e são exterminadas as velharias imprestáveis
armazenadas no cérebro.
A morte, esse fenómeno extraordinário, para ser
compreendida, tem de o ser com o amor, apenas o amor a pode penetrar. Quando
morremos psicologicamente estamos a conviver com a morte e saberemos o que é
morrer, quando isso acontecer no plano físico.
Quando morremos para o conteúdo da memória, para o
passado, para os nossos pensamentos, em suma, para o “eu”, somos introduzidos na
criação e renovação, no mistério da morte, que afinal não é mistério nenhum. A
erradicação do pensamento, neste sentido, não é uma fuga à incapacidade de
erradicarmos a ideia de morte.
Se de instante a instante morremos para os acontecimentos
quotidianos, para o ódio, ciúme e outros estados negativos, para o prazer,
desejos apegos, para o sofrimento, para os problemas que nos afligem, para o
que contemplamos, estaremos em contacto directo com a morte, essa realidade tão
temida.
Com a cessação do pensamento há purificação, alegria,
inocência. A morte do velho traz o júbilo do inesperado. Para além da morte
está o sempre novo. E para além da morte existe algo. Mas, sois vós que tendes
de o descobrir; não eu por vós, nem concílios, igrejas, gurus ou quaisquer
santos e videntes.
Não nos iludamos. Estamos sós. Temos de o compreender, não
apenas superficialmente, mas na profundeza do nosso ser. Estamos sós nessa
caminhada para algures ou para lado nenhum.
Veja-se »
Deus, Alma e Morte na História do Pensamento Ocidental
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