Download do texto
integral do blogue em »
http://www.homeoesp.org/livros_online.html
em
A (IN)UTILIDADE DA METAFÍSICA
Dizer que o Universo não é produto do acaso, mas antes de um
Génio Todo-Poderoso, consciente, sábio e bom, contraria os factos, mesmo
que sejam fruto de ilusão. Dizer-se que o Universo foi criado intencionalmente,
com sabedoria e bondade, elevadas ao seu mais alto grau só muito dificilmente
poderá ser demonstrado.
Neste mundo bélico, constatamos desde o nascimento daquilo
que apelidamos civilização, mais guerras do que anos, uma imensidão de crimes
horrendos, fome, miséria, sofrimento físico e psicológico quanto baste. Que Génio
odioso nos terá criado e enviado para tal mundo, se é que tal Génio
existe?
- Não vislumbro outro, que não um Génio do Mal ou
na melhor das hipóteses, um Génio da Indiferença.
Voltaire, inspirado no terramoto de Lisboa, escreveu um
polémico poema, O Desastre de Lisboa, de que publicamos alguns excertos:
Ó
infelizes mortais! Ó deplorável terra!
Ó
agregado horrendo que a todos os mortais encerra!
Exercício
eterno que inúteis dores mantém!
Filósofos
iludidos que bradais «Tudo está bem»;
Acorrei,
contemplai estas ruínas malfadadas,
Estes
escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,
Estas
mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados
Estes
membros dispersos sob estes mármores quebrados
Cem
mil desafortunados que a terra devora,
Os
quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,
Enterrados
com seus tectos terminam sem assistência
No
horror dos tormentos sua lamentosa existência!
Aos
gritos balbuciados por suas vozes expirantes,
Ao
espectáculo medonho de suas cinzas fumegantes,
Direis
vós: «Eis das eternas leis o cumprimento,
Quem
de um Deus livre e bom requer o discernimento?»
Direis
vós, perante tal amontoado de vítimas:
«Deus
vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes»?
Que
crime, que falta comentaram estes infantes
Sobre
o seio materno esmagados e sangrantes?
Lisboa,
que não é mais, teve ela mais vícios
Que
Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?
Lisboa
está arruinada e dança-se em Paris.
(...)
Ide
interrogar as margens do Tejo;
Revolvei
os escombros deste sangrento despejo;
Perguntai
aos moribundos, nesta morada de pavor,
Se
é o orgulho quem clama: «Ajudai-me, Senhor!
Ó
céus, tende piedade do humano fadário!»
«Tudo
está bem», dizeis vós, «e tudo é necessário.»
Mas
quê! O Universo inteiro, sem este abismo infernal,
Sem
engolir Lisboa, teria estado em maior mal?
(...)
Não,
não ostenteis mais a meu coração alterado
Essas
imutáveis leis da necessidade,
Essa
cadeia dos corpos, dos espíritos, e dos mundos.
Ó
sonhos de sábios! Ó desvarios profundos!
Deus
tem na mão a corrente, e não está acorrentado;
Por
sua escolha benévola tudo é determinado:
Ele
é livre, ele é justo, e não é implacável.
Porque
sofremos então com um amo justo e amável?
(...)
Elementos,
animais, humanos, tudo está em guerra.
Há
que reconhecê-lo, o “mal” está sobre a terra:
Seu
princípio secreto não nos é de todo conhecido.
Do
autor de todo o bem, terá o mal decorrido?
(...)
Um
Deus veio consolar a nossa raça alarmada;
Visitou
a terra, mas não a mudou em nada!
Diz-nos
um sofista arrogante que ele o não pôde fazer:
«Ele
poderia», diz outro, «mas havia de o querer:
Querê-lo-ia,
sem dúvida;» e, enquanto se apregoa,
Há
trovões subterrâneos que vão engolindo Lisboa,
E
de trinta cidades dispersam os lambris,
Das
margens sangrentas do Tejo até ao mar de Cádis.
Ou
o homem nasceu culpado, e Deus pune sua raça,
Ou
esse senhor absoluto do ser e do espaço,
Sem
furor, sem piedade, tranquilo, indiferente,
De
seus primeiros decretos segue a eterna torrente;
Ou
a matéria informe, a seu mestre rebelde,
Transporta
consigo defeitos tão necessários quanto ela;
Ou
Deus nos põe à prova, e esta estadia mortal
Não
é senão uma passagem estreita para um mundo eternal.
Aqui
experimentamos dores transitórias:
Falecer
é um bem que termina as nossas misérias.
Mas
quando por fim sairmos desta passagem de agruras,
Qual
de nós pretenderá merecer colher venturas?
(...)
Leibniz
nunca me ensina por que nós invisíveis,
No
mais bem ordenado dos universos possíveis,
Uma
desordem eterna, um caos de infelicidades,
A
nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades,
Nem
por que é que o inocente, tal como o culpado,
Sofre
do mesmo modo este mal desgraçado.
Também
não concebo como tudo estaria bem:
Sou
como um médico; infelizmente nada sei.
(...)
“Um
dia tudo estará bem”, eis aí a nossa esperança;
“Tudo
está bem hoje em dia”, eis aqui a ilusão.
(...)
Outrora
um califa, chegado à hora em que se falece,
Ao
deus que adorava disse então como prece:
«Trago-te,
ó único rei, único ser sem limitação,
Tudo
o que não possuis na tua imensidão,
Os
defeitos, os remorsos, os males e a ignorância.»
Mas
poderia haver acrescentado ainda “a esperança”.
Da história, principalmente da judaica, retiraram
filósofos e teólogos, a certeza de que o Génio do Bem usa o mal para daí
fazer nascer o bem. Pensa-se que nada deixaria subsistir de mal na sua obra, se
na sua omnipotência e bondade não tivesse a intenção de fazer derivar o bem do
mal.
Como é astuto o pensamento! Que estranha forma de
reconciliação entre o homem “religioso”, crente numa entidade que tem em si a
ideia suprema de Bem, com a inevitabilidade do mal.
O mal é tão
omnipotente no mundo, quanto o Génio do Bem na especulação dos
metafísicos e teólogos. Como é que poderemos fundamentar tal facto? Se tem em
si todo o poder – mesmo o
inimaginável –, se ele é a ideia suprema do Bem, como pode permitir
o mal? Iremos retirar-lhe o atributo da omnipotência? Ou muito simplesmente, de
forma infantil, atribuímos o mal a uma outra “divindade”, a um demónio, a
Satanás, em suma, ao Génio do Mal, mesmo que subalternizado? Podemos
gerar a premissa, que a criação do homem – criação
que só se pode compreender como acto de amor –, faz-se
intrinsecamente acompanhar do seu livre arbítrio, para que o Bem seja atingido
pela maioria dos seres racionais criados. Um novo argumento, engenhoso a uma
primeira aproximação. Mas, na sua omnisciência, não terá o Génio Supremo
previsto que tipo de mundo viria a existir atenta a imperfeita natureza dos
entes racionais que gerou? E que ascender a si, restaria destinado a um punhado
de eleitos?
Por vezes, em noites de insónia, construo com recurso à
minha imaginação, novas realidades, novos mundos, e eu, que sou o mais
imperfeito dos imperfeitos, estou certo de que todos os “meus mundos”, são
melhores do que este...
E em nenhum dos meus mundos, preconizo a ilusão ou engano
dos seres de que os farei povoar. Do mesmo modo, será de todo contrário à
natureza divina do Génio do Bem, o engano.
Leibniz, criador
da palavra teodiceia – que
pretende demonstrar pela razão que não podemos imputar a Deus (Génio) os múltiplos erros do mundo
–, elaborou um conjunto de argumentos, intentando demonstrar que o Génio
criou o melhor dos mundos, e que na ordem é natural que exista alguma desordem,
ou seja, o mal, sob pena daquela ser imperfeita – se o mundo fosse bom e só bom, seria imperfeito, já que
a dissonância gera muitas vezes na composição musical, a harmonia.
Mais uma vez a
argúcia falaciosa do pensamento, que inocenta o Génio da sua
imperfeição, que o isenta da existência do pecado, desmorona a consonância dos
“meus mundos” e pode quando muito fundamentar o argumento atinente à reparação
da injustiça.
Se quisermos
sintetizar a natureza do Génio, teremos de nos questionar, tal como
Epicuro fez:
- O Génio
quer suprimir os males do mundo e não pode – se não os pode suprimir é
impotente e a divindade não o é;
- O Génio
pode suprimi-los, mas não quer – então é invejosa e a divindade não o pode ser;
- Não os quer
suprimir nem pode – é invejosa e impotente e a divindade também o não pode ser
e não o é;
- O Génio
quer e pode suprimir os muitos e terríveis males do mundo ( única atitude que é
condizente com o Ser do Bem Supremo ) – então, donde provém o mal e porque é
que o não elimina?
Confiai em Deus,
dizem-nos. Mas que confiança e amor podeis ter num Ser que permite atrocidades
constantes, a miséria, a fome, a morte por carência dos mínimos cuidados de
saúde, os cataclismos que engolem tantos inocentes de modo indiscriminado, a
guerra, afinal todo um conjunto de males e injustiças?
Deus criador. Não é a cadeia alimentar a maior das violências?!
Não estaremos
votados desde sempre às leis da acaso ou o nosso Génio é
indubitavelmente um Génio do Mal ou um Génio da Indiferença?
Ver »