quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

VII - DA NATUREZA DA CRIAÇÃO - UM DEUS DO MAL OU DA INDIFERENÇA?



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A (IN)UTILIDADE DA METAFÍSICA




Dizer que o Universo não é produto do acaso, mas antes de um Génio Todo-Poderoso, consciente, sábio e bom, contraria os factos, mesmo que sejam fruto de ilusão. Dizer-se que o Universo foi criado intencionalmente, com sabedoria e bondade, elevadas ao seu mais alto grau só muito dificilmente poderá ser demonstrado.
Neste mundo bélico, constatamos desde o nascimento daquilo que apelidamos civilização, mais guerras do que anos, uma imensidão de crimes horrendos, fome, miséria, sofrimento físico e psicológico quanto baste. Que Génio odioso nos terá criado e enviado para tal mundo, se é que tal Génio existe?
- Não vislumbro outro, que não um Génio do Mal ou na melhor das hipóteses, um Génio da Indiferença.

Voltaire, inspirado no terramoto de Lisboa, escreveu um polémico poema, O Desastre de Lisboa, de que publicamos alguns excertos:


Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!
Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!
Exercício eterno que inúteis dores mantém!
Filósofos iludidos que bradais «Tudo está bem»;
Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,
Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,
Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados
Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados
Cem mil desafortunados que a terra devora,
Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,
Enterrados com seus tectos terminam sem assistência
No horror dos tormentos sua lamentosa existência!
Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,
Ao espectáculo medonho de suas cinzas fumegantes,
Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento,
Quem de um Deus livre e bom requer o discernimento?»
Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:
«Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes»?
Que crime, que falta comentaram estes infantes
Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?
Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios
Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?
Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.

(...)

Ide interrogar as margens do Tejo;
Revolvei os escombros deste sangrento despejo;
Perguntai aos moribundos, nesta morada de pavor,
Se é o orgulho quem clama: «Ajudai-me, Senhor!
Ó céus, tende piedade do humano fadário!»
«Tudo está bem», dizeis vós, «e tudo é necessário.»
Mas quê! O Universo inteiro, sem este abismo infernal,
Sem engolir Lisboa, teria estado em maior mal?

(...)

Não, não ostenteis mais a meu coração alterado
Essas imutáveis leis da necessidade,
Essa cadeia dos corpos, dos espíritos, e dos mundos.
Ó sonhos de sábios! Ó desvarios profundos!
Deus tem na mão a corrente, e não está acorrentado;
Por sua escolha benévola tudo é determinado:
Ele é livre, ele é justo, e não é implacável.
Porque sofremos então com um amo justo e amável?

(...)

Elementos, animais, humanos, tudo está em guerra.
Há que reconhecê-lo, o “mal” está sobre a terra:
Seu princípio secreto não nos é de todo conhecido.
Do autor de todo o bem, terá o mal decorrido?

(...)

Um Deus veio consolar a nossa raça alarmada;
Visitou a terra, mas não a mudou em nada!
Diz-nos um sofista arrogante que ele o não pôde fazer:
«Ele poderia», diz outro, «mas havia de o querer:
Querê-lo-ia, sem dúvida;» e, enquanto se apregoa,
Há trovões subterrâneos que vão engolindo Lisboa,
E de trinta cidades dispersam os lambris,
Das margens sangrentas do Tejo até ao mar de Cádis.

Ou o homem nasceu culpado, e Deus pune sua raça,
Ou esse senhor absoluto do ser e do espaço,
Sem furor, sem piedade, tranquilo, indiferente,
De seus primeiros decretos segue a eterna torrente;
Ou a matéria informe, a seu mestre rebelde,
Transporta consigo defeitos tão necessários quanto ela;
Ou Deus nos põe à prova, e esta estadia mortal
Não é senão uma passagem estreita para um mundo eternal.
Aqui experimentamos dores transitórias:
Falecer é um bem que termina as nossas misérias.
Mas quando por fim sairmos desta passagem de agruras,
Qual de nós pretenderá merecer colher venturas?

(...)

Leibniz nunca me ensina por que nós invisíveis,
No mais bem ordenado dos universos possíveis,
Uma desordem eterna, um caos de infelicidades,
A nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades,
Nem por que é que o inocente, tal como o culpado,
Sofre do mesmo modo este mal desgraçado.
Também não concebo como tudo estaria bem:
Sou como um médico; infelizmente nada sei.

(...)

“Um dia tudo estará bem”, eis aí a nossa esperança;
“Tudo está bem hoje em dia”, eis aqui a ilusão.

(...)


Outrora um califa, chegado à hora em que se falece,
Ao deus que adorava disse então como prece:
«Trago-te, ó único rei, único ser sem limitação,
Tudo o que não possuis na tua imensidão,
Os defeitos, os remorsos, os males e a ignorância.»
Mas poderia haver acrescentado ainda “a esperança”.


Da história, principalmente da judaica, retiraram filósofos e teólogos, a certeza de que o Génio do Bem usa o mal para daí fazer nascer o bem. Pensa-se que nada deixaria subsistir de mal na sua obra, se na sua omnipotência e bondade não tivesse a intenção de fazer derivar o bem do mal.
Como é astuto o pensamento! Que estranha forma de reconciliação entre o homem “religioso”, crente numa entidade que tem em si a ideia suprema de Bem, com a inevitabilidade do mal.
O mal é tão omnipotente no mundo, quanto o Génio do Bem na especulação dos metafísicos e teólogos. Como é que poderemos fundamentar tal facto? Se tem em si todo o poder – mesmo o inimaginável –, se ele é a ideia suprema do Bem, como pode permitir o mal? Iremos retirar-lhe o atributo da omnipotência? Ou muito simplesmente, de forma infantil, atribuímos o mal a uma outra “divindade”, a um demónio, a Satanás, em suma, ao Génio do Mal, mesmo que subalternizado? Podemos gerar a premissa, que a criação do homem – criação que só se pode compreender como acto de amor –, faz-se intrinsecamente acompanhar do seu livre arbítrio, para que o Bem seja atingido pela maioria dos seres racionais criados. Um novo argumento, engenhoso a uma primeira aproximação. Mas, na sua omnisciência, não terá o Génio Supremo previsto que tipo de mundo viria a existir atenta a imperfeita natureza dos entes racionais que gerou? E que ascender a si, restaria destinado a um punhado de eleitos?

Por vezes, em noites de insónia, construo com recurso à minha imaginação, novas realidades, novos mundos, e eu, que sou o mais imperfeito dos imperfeitos, estou certo de que todos os “meus mundos”, são melhores do que este...
E em nenhum dos meus mundos, preconizo a ilusão ou engano dos seres de que os farei povoar. Do mesmo modo, será de todo contrário à natureza divina do Génio do Bem, o engano.

Leibniz, criador da palavra teodiceia – que pretende demonstrar pela razão que não podemos imputar a Deus (Génio) os múltiplos erros do mundo –, elaborou um conjunto de argumentos, intentando demonstrar que o Génio criou o melhor dos mundos, e que na ordem é natural que exista alguma desordem, ou seja, o mal, sob pena daquela ser imperfeita – se o mundo fosse bom e só bom, seria imperfeito, já que a dissonância gera muitas vezes na composição musical, a harmonia.
Mais uma vez a argúcia falaciosa do pensamento, que inocenta o Génio da sua imperfeição, que o isenta da existência do pecado, desmorona a consonância dos “meus mundos” e pode quando muito fundamentar o argumento atinente à reparação da injustiça.

Se quisermos sintetizar a natureza do Génio, teremos de nos questionar, tal como Epicuro fez:
- O Génio quer suprimir os males do mundo e não pode – se não os pode suprimir é impotente e a divindade não o é;
- O Génio pode suprimi-los, mas não quer – então é invejosa e a divindade não o pode ser;
- Não os quer suprimir nem pode – é invejosa e impotente e a divindade também o não pode ser e não o é;
- O Génio quer e pode suprimir os muitos e terríveis males do mundo ( única atitude que é condizente com o Ser do Bem Supremo ) – então, donde provém o mal e porque é que o não elimina?

Confiai em Deus, dizem-nos. Mas que confiança e amor podeis ter num Ser que permite atrocidades constantes, a miséria, a fome, a morte por carência dos mínimos cuidados de saúde, os cataclismos que engolem tantos inocentes de modo indiscriminado, a guerra, afinal todo um conjunto de males e injustiças?
Deus criador. Não é a cadeia alimentar a maior das violências?!

Não estaremos votados desde sempre às leis da acaso ou o nosso Génio é indubitavelmente um Génio do Mal ou um Génio da Indiferença?


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